terça-feira, 3 de novembro de 2009

Musicando - David Fonseca

Entrevista de Gonçalo Frota (Sol) a David Fonseca a propósito do lançamento do seu último disco.

Está desde ontem à venda o quarto álbum a solo de David Fonseca. Em entrevista ao SOL, o músico revela a perplexidade perante os concursos musicais da TV e conta como ultrapassou as reticências que tinha em relação à profissão de músico.

A entrevista acontece a mais de uma semana do lançamento de Between Waves (com ecos do rock clássico americano, de Roy Orbison e Tom Petty a Bruce Springstreen e Rick Ocasek), o quarto disco da vida de David Fonseca pós-Silence 4. Encontramo-nos nos escritórios da editora Universal e a conversa toma vida própria. O disco quase cai no esquecimento assim que o leitor portátil de CD em cima da mesa serve de rastilho a uma série de memórias do músico. Do CD David Fonseca passa para o vinil e daí para a assunção de que sente no objecto uma certa descoberta musical que cataloga como ‘doença’. «Ainda por cima faço colecção de todo lixo musical dos anos 80 e digo muitas vezes que o único mal de fazer música é perder tempo a fazê-la quando podia estar a ouvi-la». Deixa para a primeira pergunta da nossa conversa…


E não sente a culpa no sentido inverso? Quando está a ouvir esse ‘lixo musical’ não pensa que podia estar a compor?

Nada. E acho que uma pessoa não pode ser muito elitista em relação à música que ouve. Nem todos os locais são exactos para estar a ouvir o Lou Reed a cantar o Perfect Day. Há sítios onde é porreiro levar com uma daquelas ‘banhadas’ à moda antiga como o Falco ou a Samantha Fox. Há momentos para tudo e é bom que essa música também venha ao de cima de vez em quando. E nunca acho que estar agarrado a um vinil seja perder tempo. Portanto devo ser dos melhores clientes que esta indústria alguma vez poderá ter. Se fossem todos como eu esta indústria seria riquíssima. Infelizmente não é, nem nunca será.


E enquanto músico não o preocupa que o estado da indústria seja tão grave?

Um bocadinho. Há uma palavra muito recorrente hoje nas indústrias – sustentabilidade. E isso preocupa-me. Para já, defendo que a música deve ter um valor, seja ele qual for. E a sustentabilidade prende-se muito com a forma como se grava. Eu sei que é muito bonito o discurso do indie que defende ‘podes gravar em casa, podes fazer um vídeo com umas passadeiras’. Gosto muito desse discurso e é espectacular que as pessoas consigam fazer as coisas com essas condições mínimas. Mas nem tudo tem de ser feito assim. Acho que cingir a música a uma ideia caseira é extremamente errado – é para isso que servem os estúdios, que há malta que trabalha em discos durante anos, aprende a gravar, a misturar, a produzir, é para isso que servem os técnicos. Não é algo vago e essas coisas têm de ser pagas. São profissionais, acho que têm toda a legitimidade em existirem e eu quero que elas existam, porque eu não quero produzir o meu próprio disco, não quero perceber por que aquele botão faz não sei o quê. E portanto acho, claramente, que a indústria tem de ser sustentável.


Quem é mais atingido por essa falta de sustentabilidade?

Muitas vezes defende-se que são artistas como eu, já estabelecidos. É mentira. O mais atingido por isto é o miúdo que está lá em casa e que nunca lançou nenhum disco. A vulgarização mais imediata da questão é a ideia do ‘agora é possível fazer a minha música em casa, distribuí-la online de graça e é assim que vou conquistar o mercado’. É novamente mentira, o mercado não é conquistado dessa maneira. Não peguem em um ou dois exemplos que aconteceram assim e digam que é esta a maneira de funcionar do mercado. A ideia de que uma banda de Famalicão que está a começar, põe um EP online no MySpace e vai contaminar as ondas hertzianas é algo que não vai acontecer e que não é assim tão simples. Tomara que fosse. Há um trabalho gigantesco que tem de existir para que isso aconteça. E como nós vivemos numa sociedade onde a visibilidade desse trabalho é muito pouca parece simples. Houve o caso da Lily Allen que tinha umas músicas no MySpace e de repente era uma estrela. Mas quando se fala de os mp3 serem livres e gratuitos, ela é a primeira pessoa a dizer que não. É isso que ando a defender no nosso país, mas é uma mensagem difícil de passar, especialmente para aqueles miúdos todos que fazem aquela fila para os concursos televisivos a cantar. Faz-me confusão que os modelos e a maneira de pensar sobre como ser músico esteja tão delineada à volta da ideia de ter sucesso e ser famoso, e nunca encarada como uma profissão em que é preciso trabalhar. Em Portugal em vez de se defender a profissão do músico, defende-se muito mais a profissão do sucesso, o famoso que vai para a discoteca ser pago porque é famoso.


Aquilo a que se chama a ‘presença’.

Exacto, as presenças. Acho a ideia absolutamente absurda. Uma vez questionaram-me se eu fazia presenças. Só a ideia de fazer presenças pareceu-me algo fantasmagórico, porque pensei que estava num sítio e presente noutro lado qualquer. Mas já sabíamos que íamos progredir para isto, os media estão a progredir para essa vulgarização de que já o Warhol falava nos anos 60. Mas essa vulgarização atinge momentos de perfeita brejeirice – o facto de nós acharmos que uma pessoa é especial porque aparece em televisão… E quando é que o artista brilha? Brilha muito poucas vezes.


Em que situações é que isso acontece?

Em situações em que se tira muito prazer do que se está a fazer: quando um espectáculo está cheio, quando se trabalha muito para um disco chegar às pessoas e realmente se consegue chegar, quando se faz um concerto especial que não é numa cidade grande e enche. Não é o facto de receber um prémio na televisão, isso garanto que não é. Porque tudo aquilo que descrevo está relacionado com a adrenalina, com o facto de estar a subir uma montanha, de chegar ao topo de uma montanha pessoal. E não estar a ser glorificado sempre em relação aos outros. A profissão de artista é muito mais interessante do que nos querem fazer crer a maior parte das vezes. Tem a ver sobretudo com liberdade e expressão.


Esta a falar muito em profissão. No entanto, quando os Silence 4 terminaram houve um período em que não sabia se queria assumir a música como profissão. Já se sente confortável nesse papel?

Muito, muito confortável. Nessa altura achava que ia fazer isto mais uns tempos e que iria acabar por me fartar dos processos todos que a música implica e que não abdicam de alguma repetição: gravar um disco, ir para estúdio, depois fazer uma tour. Isso entediava-me por ser sistematicamente igual. Mas a certa altura foi a profissão que tomou conta de mim. De repente percebi: ‘Mas por que raio estou sempre a negar uma profissão que me parece tão natural?’ Em vez de combater essa ideia, resolvi abraçá-la de uma vez por todas. Acho que daí é que se explica com o facto de editar discos de dois em dois anos. Até acho que até sou preguiçoso na minha profissão, porque se sou músico devia fazer mais música. E espero que no futuro mais próximo isso seja uma realidade.


E, no fundo, o disco de dois em dois é o padrão.

Até já se desvia um bocadinho do padrão. Não vejo muita gente à minha volta em Portugal a editar de dois em dois anos.


É curioso que se torne exemplar na forma como abraça uma profissão que teve tanta relutância em aceitar.

É verdade. Posso não estar convencido, mas ao menos enquanto cá estou quero fazer isto mesmo bem [risos]. Acho que isto se prende um bocado com uma certa insatisfação e uma certa hiperactividade que tenho de resolver. E penso que comecei na música relativamente tarde. Gostava de ter começado a fazer discos aos 17 ou 18 anos e só comecei aos 25. E os discos a solo só aos 30. Vai-se sempre a tempo para tudo mas tenho sempre a sensação de que não tenho tempo para parar. Não há vez nenhuma em que saia do estúdio e não esteja a fazer as misturas finais com o meu produtor e a explicar-lhe o que gostava de fazer no meu próximo projecto. Isto é assustador, mas ao mesmo tempo deixa-me sempre inquieto em relação ao futuro.


Mas isso manifesta-se de uma forma clara?

Sim, sim. Consigo ver o que quero fazer. O que não quer dizer que isso vá acontecer, mas tenho o projecto. Posso garantir que no dia em que for para debaixo da terra, onde quer que me ponham, vou ter dez projectos por fazer. Porque é a minha maneira de ser. Gosto dessa ideia porque sinto uma liberdade extrema nisto. Sei que se falhar, o que quer que falhe não tem importância nenhuma porque tenho mais dez coisas a acontecer e possíveis de agarrar.


O que quer dizer que mantém projectos vivos fora da música.

Sim, sim. Isso está sempre a acontecer – pequenos, grandes, só para mim… Tenho um arquivo gigantesco e uma das gavetas diz ‘por explorar’ [risos]. São coisas em que penso e depois acho que vai levar um tempão a fazer. Isso ajuda-me muito. Quanto tive o primeiro projecto musical, os Silence 4, aquilo foi um fenómeno. Assustou-me muito porque havia qualquer coisa em mim que dizia que tinha de estar à altura do sucesso. Ou seja, tudo o que fizesse a seguir, especialmente se fosse um disco dos Silence 4, tinha de estar à altura. Quer quisesse quer não, era um peso que estava em cima de mim e só muito lentamente consegui tirá-lo dos ombros. Essa foi uma das boas maneiras que descobri: nem tudo tem de ter sucesso. Quando faço algo não tenho de pensar necessariamente que aquilo vai ter mesmo de resultar senão estou em apuros com a minha vida pessoal. Não vivo nesse pânico.


Quando estava nas misturas finais do Dreams in Colours que vislumbre teve deste disco? Era a ideia de voltar a tocar todos os instrumentos?

Não, normalmente tudo muda com o tempo porque quando se acaba de fazer um disco as coisas estão muito frescas e quer-se fazer o antónimo do que se acabou de fazer. Penso sempre que o seguinte vai ser radicalmente diferente. Depois tudo vai amadurecendo com o tempo porque uma das coisas boas com os discos é que estabeleço metas para os acabar. Normalmente trabalho muito o disco no estúdio caseiro e depois marcamos o estúdio profissional com o produtor e digo ‘acabamos as gravações no dia tal’, porque é a única forma que tenho de acabar o disco. E também faço isso porque assim forço-me a que o disco seja o retrato daquele tempo e não vou andar ali à procura do som perfeito. Quando acabei o meu último disco, lembro-me de ter pensado várias, mas muitas delas prendiam-se com tocarmos ao vivo num conceito diferente. Um dos meus grandes projectos com o disco anterior foi mudar claramente o meu espectáculo ao vivo e uma certa atitude que havia da minha parte.


Mas o que mudou nessa atitude?

Uma coisa é subir a um palco e olhar para as canções como sendo minhas. Vou lá acima, faço as minhas canções e venho-me embora. E há outra coisa que é subir a um palco na Covilhã, num dia de chuva e granizo, olhar para a frente e ter a clara e real noção de que aquelas pessoas saíram de casa numa noite daquelas e ficaram ali dispostas a olhar para mim e ouvir-me durante duas horas. A certa altura apercebi-me disso, que se calhar devia ter em conta que esse esforço tinha sido feito.


E como se operou essa mudança?

Passei de um cantautor obscuro e sombrio em cima do palco, que só diz uma palavra, obrigado, e muito baixinho de vez em quando, para um storyteller que lhe apetece e quer genuinamente participar nesta noite. Apercebi-me que queria vivamente que estas pessoas se esquecessem da vida delas, do que estão a fazer, dos problemas que tiveram, e que entrasse comigo duas horas naquilo. Comecei essa digressão de uma forma sombria e acabei-a a vestir fatos de astronauta em palco, com fogo-de-artifício, a cantar canções como o ‘Video Killed the Radio Star’ e a contar histórias tenebrosas de pessoas que me batem à porta a meio da noite. O que tentei perceber foi: se tenho tanto trabalho a fazer estes discos e que encaixem num universo, por que razão depois ao vivo sou uma pessoa tão sombria e displicente com o trabalho desta forma? Não podia ser.


Recentemente lançou um desafio público para encontrar a substituta da Rita Redshoes na sua banda. Já encontrou a pessoa certa?

Já, mas ainda não me deixam dizer. É uma pessoa que está noutros projectos e fiquei contente que ela tivesse até concorrido. Mas esperava que mais gente concorresse. Ainda há pouca gente a querer aprender instrumentos e a querer participar de facto naquilo que é uma profissão. É muito estranho para mim estar deste lado a dizer ‘vem comigo participar numa coisa que é real, que acontece e que vai andar pela estrada toda, aqui e lá fora’, e por outro lado ver aqueles milhares de pessoas no concurso televisivo. Faz-me muita confusão. Como é que é possível? É certo que nem todos gostam da música que faço mas mesmo assim esperaria muitas mais. Não tive milhares de pessoas a concorrer. Se calhar nem cem tive.

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