A Direcção Regional dos Assuntos Culturais (DRAC) pretende editar, no próximo ano, a obra 'Argonáutica de Cavalaria', do autor madeirense seiscentista Tristão Gomes de Castro. Esta informação foi-nos adiantada pelo director, João Henrique Silva, por Marcelino de Castro, responsável pelas edições de livros da DRAC, e pelo investigador espanhol Aurelio Vargas Díaz-Toledo, da Universidade Complutense de Madrid, responsável pela redescoberta desta antiga obra literária na Torre do Tombo, em Lisboa. A edição reveste-se de particular significado e interesse, nacional e mesmo internacional, na medida em que se trata de um antigo romance de cavalaria na tradição dos de Chrétien de Troyes (séc. XII), que narram as lendas arturianas e a demanda do Graal, ou do mais recente ' Amadis de Gaula' , cuja autoria não é certa. O sec. XVI foi, de facto, um período de renascimento do interesse pelos romances de cavalaria, e é nessa linha que se enquadra este 'Leomundo de Grécia ou Argonáutica de Cavalaria', de Tristão Gomes de Castro.
A tradição dos romances de cavalaria, disse-nos Aurelio Vargas Díaz-Toledo, "teve os seus inícios na França, com Chrétien de Troyes, com aqueles romances corteses onde surgem as histórias de Lancelot, de Perceval, daquelas personagens que buscavam o Santo Graal... Essa tradição manteve-se durante toda a Idade Média. Então, já nos finais do séc. XV, graças ao 'Amadis de Gaula', o género renovou-se e ganhou uma nova vitalidade, totalmente diferente. Em 'Amadis de Gaula', o autor castelhano Garcí Rodriguez de Montalvo refundiu, readaptou todos estes materiais medievais do Amadis e adaptou-o aos tempos dos reis católicos de Espanha. É com este livro que se dá verdadeiramente uma eclosão do género cavaleiresco, e essa paixão pelos romances de cavalaria, que teve um sucesso enorme não só em Castela, mas também em Portugal".
Pesquisando um livro perdido
Aurélio Vargas sublinha que a influência dos romances de cavalaria ainda hoje se faz sentir entre nós. A freguesia de Gaula, na Madeira, terá sido denominada assim por causa do livro 'Amadis de Gaula'. Nomes como 'Lançarote', (como o da família senhorial Lançarote Teixeira de Gaula) também terão derivado da literatura cavaleiresca (de 'Lancelot', das lendas arturianas?). Outros, ainda usados hoje em dia - como Oriana - serão ainda reflexos desse passado literário.
Para o investigador espanhol, a publicação de 'Argonáutica de Cavalaria' pela DRAC é uma importante consequência do seu trabalho de pesquisa, "pois assim tenho a oportunidade de difundir as minhas investigações relativas a Tristão Gomes de Castro e ao seu texto, desconhecido desde o séc. XVII, quando se deu mais ou menos a última referência bibliográfica, de Barbosa Machado, na sua Biblioteca Lusitana, que se refere a Argonáutica de Cavalaria ou Leomundo de Grécia, o protagonista do romance". Por toda a colaboração, está grato à DRAC e à Universidade da Madeira. Aurélio Vargas conta-nos que o livro estava desaparecido, "ninguém o tinha visto desde essa altura", e que a sua descoberta se deu por mero acaso. "Eu estava a procurar outras coisas, relacionadas com autores de romances de cavalaria, debruçando-me principalmente sobre o livro 'Palmeirim de Inglaterra', de Francisco de Moraes (referido no D. Quixote de Cervantes como um dos melhores livros de cavalaria) e, de repente, apareceu naquelas fichas, feitas por bibliotecários do séc. XIX, uma referência a Leomundo de Grécia". O académico espanhol conta que já não era possível fazer uma requisição nesse dia: era uma sexta-feira, ao final da tarde. Passou nervoso o fim-de-semana. Só na segunda-feira pôde folhear o manuscrito, fazendo assim a surpreendente descoberta, da qual posteriormente deu conta numa conferência em 2008 na Universidade da Madeira, e num artigo publicado na revista cultural 'Islenha' nº 43, editada pela DRAC. Actualmente, Aurélio Vargas está de novo na Madeira, graças à UMa e a uma bolsa da DRAC, para, durante um mês, "pesquisar e completar algumas investigações sobre a biografia de Tristão Gomes de Castro, que foi um personagem importante na ilha da Madeira".
Isto é importante, "porque a minha pesquisa foi desenvolvida a partir de Toledo e Madrid, e isso não é, claro, o mesmo que consultar aqui os próprios documentos, em pessoa". Fomos encontrá-lo no Arquivo Regional da Madeira. "Estou a descobrir coisas importantes sobre as propriedades dos Gomes de Castro, e sobre a personalidade de Tristão. Por exemplo, há uma semana encontrei um documento onde aparecia a primeira assinatura do próprio Tristão Gomes de Castro, o que para mim é importante, e acho que também o é para a cultura madeirense".
Nascido no Funchal "não se sabe bem quando, 1539, 1544, e falecido a 14 de Março de 1611, Tristão Gomes de Castro era descendente de um castelhano, Cristóvão Martins de Agrinhão e Vargas, que casou com Joana Gomes de Castro, do Funchal, por sua vez descendente de João Gomes da Ilha, o trovador, que deu o nome à Ribeira de João Gomes. "Na infância, esteve na corte portuguesa, no continente, e teve uma formação intelectual importante, dentro de meios onde pôde alcançar certos privilégios. Foi alferes-mor da ilha da Madeira, um cargo importante, sobretudo militar, e é possível que, no continente, entrasse em contacto com círculos culturais como os de Francisca de Aragão ou da Infanta D. Maria, que fazia serões onde se falava principalmente de literatura (e de romances de cavalaria) e ainda de poesia. Nestes círculos, moviam-se autores tão importantes como Jorge Ferreira de Vasconcelos ou o próprio Luís de Camões. É possível que tenha sido nestes círculos que surgiu Leomundo de Grécia, esta trilogia, estes textos cavaleirescos importantes para a história da literatura portuguesa, e da literatura madeirense".
Ligado à Universidade Complutense de Madrid como 'colaborador honorífico', "uma figura simbólica, sem nenhum cargo nem importância, mas que me vincula ao Departamento de Filologia Românica", Aurélio Vargas Díaz-Toledo está agora a trabalhar também na Universidade de Alcalá de Henares, perto de Madrid. Ali, no Centro de Estudos Cervantinos, está a preparar uma base de dados sobre romances de cavalaria, onde se reunirão todas as informações relativas a autores espanhóis e portugueses. É um projecto ambicioso, para desenvolver durante três anos, e que exigirá actualizações de tempos a tempos, "para que ganhe vida, e importância, dentro da Internet".
As pesquisas que este espanhol faz neste momento na Madeira visam a criação "de uma edição anotada, e muito bem cuidada, muito bem feita por parte da DRAC, e que tentará ser um modelo a seguir para edições futuras da obra".
Para mais, como enfatizam Aurelio Vargas e Marcelino de Castro, a edição de 'Argonáutica de Cavalaria' será o primeiro número de uma colecção que se designará ou'Biblioteca Madeirense', ou 'Biblioteca de Autores Madeirenses', ou algo parecido. Objectivo: publicar uma colecção de referência, com obras de autores da ilha ou que, não sendo madeirenses, tenham escrito sobre ela, textos já com um lugar consagrado na história da literatura. Em princípio, não autores vivos, disse ao DIÁRIO Marcelino de Castro. Pelo menos não para já.
'Argonáutica...' tem muita qualidade
O investigador do país vizinho esclarece que o romance escrito por Tristão Gomes de Castro seria, na realidade, uma trilogia. A primeira parte teria, como protagonista, Leomarte de Grécia, imperador e pai de Leomundo; a segunda, tem como herói Leomundo, intitulando-se 'Argonáutica de Cavalaria'; e a terceira parte teria Floramonte de Grécia, filho de Leomundo. O enredo gira em torno "de um confronto entre dois povos, o grego e o espanhol. Leomundo tenta conquistar o amor de Rocilea, princesa das Espanhas. Mas os dois reinos estão em confronto por diferendos anteriores, e são irreconciliáveis, tal amor não pode triunfar. Mesmo assim, Leomundo tenta conquistar o amor de Rocilea, através de intervenções militares, amorosas... Tenta tudo para conseguir a mão dela".
A da corte grega é comentada por Aurélio Vargas como "um elemento que também aparece em outros romances de cavalaria... Uma corte exótica, onde tudo é perfeito, onde os cavaleiros chegam contando as suas aventuras..." Aliás, a aventura é algo de essencial nestes romances de cavalaria. Algo que fascina. Este romance em particular não se situa num tempo e num espaço absolutamente concreto. Há um grau de flexibilidade. Do que o nosso interlocutor não tem dúvidas é que esta obra é "literariamente de muita qualidade, mesmo". Cita especialistas como Isabel Almeida, da Universidade de Lisboa, ou Pinto de Castro, da Universidade de Coimbra, como apreciadores do labor de Tristão Gomes de Castro "como um dos grandes prosadores do séc. XVI". Sabe-se que escreveu outras obras. Mas perderam-se. "Provavelmente porque as obras de Tristão se difundiram de uma forma manuscrita, não impressa".