Quentin Tarantino diz que, apesar de se passar na Segunda Guerra Mundial, "Sacanas Sem Lei", que estreia hoje, é um western-spaghetti. Saiba o que aconteceria se os outros filmes do realizador também mudassem de género. Nuno Markl, Luís Filipe Borges, João Tordo e Filipe Homem Fonseca reescrevem Tarantino à portuguesa.
Kill Bill (1994)
Cena: Combate entre a Noiva e Elle Driver
Versão: Musical
Por Nuno Markl, humorista, argumentista e locutor. Autor da série ?Os Contemporâneos?
Entrada orquestral, tipo Música no Coração. ELLE abre a porta da roulotte a pontapé. E canta.
Meu mal vai de lés-a-lés
Mas, alto - o que vejo?
Direito a mim, um par de pés!
Os pés são da NOIVA, que entra de rompante e derruba ELLE.
NOIVA: Vais levar tantas
Estás na minha lista
Vou desfazer-te tanto
Vais ficar que nem alpista
ELLE: Isso é que era bom!
Saco da espada e faço-te a folha
Não te deixes enganar
Pelo facto de eu ser zarolha
Segue-se luta coreografada. ELLE usa a espada, a NOIVA o que tem à mão. Há sapateado - em cima uma da outra, alternadamente, sem perder o ritmo. A NOIVA encontra a espada Hanzo de Budd.
NOIVA: Ó filha, diz-me uma coisa
Se não for indiscrição
Que disseste tu ao Pai Mei
P'ra ele t'arrancar esse olhão?
ELLE: Que ele era um velho xexé
A verdade escarrapachada
Depois vinguei-me do gajo
Pus veneno na pescada
Agora vou-te matar
Com a tua espada - é duro!
Esta lâmina do Hanzo
Será minha de futuro
NOIVA: Pois bem, minha grande porca
Senhora de um mal tão obscuro
Lamento dar-te a notícia
Mas, filha, tu não tens futuro!
Lutam. Coreografia reminiscente dos Pauliteiros de Miranda. A NOIVA arranca o olho que resta a ELLE e faz malabarismo com ele. Usa os pés, as mãos e a espada. Ouve-se música de circo. Por fim, salta sobre o olho, esmagando-o, e sai. ELLE, cega, canta.
ELLE: Vaca, minha grande vaca
Deixaste-me cega, ó Mamba
Mas mesmo cego há quem triunfe
Olha para o caso do Stevie Wonder
Cães Danados (1992)
Cena: Gangsters descodificam ?Like a Virgin?
Versão: Cinema português old school
Por Filipe Homem Fonseca, co-autor de ?Contra Informação?, ?Bocage? e ?Conversa da Treta?
Tasca. Seis indivíduos reunidos à volta da mesa. Palitam os dentes enquanto falam.
SR. SARDINHA NO PÃO (SnP): O ?Estranha Forma de Vida? da Amália Rodrigues. É sobre uma moça que está de esperanças.
SR. PIRES DE CARACÓIS (PdC): Não é nada. É sobre uma moça que quer casar mas os pais não deixam.
SnP: Palerma, chapéus há muitos! O fado em que ela quer casar é o ?Lágrima?.
SR. TRAVESSA DE MOELAS (TdM): Qual é o ?Lágrima??
SR. PRATO DE TORRESMOS (PdT): Catano, até eu que só gosto de fado de Coimbra já ouvi o ?Lágrima?!
TdM: Eu não disse que nunca tinha ouvido, disse que não estou a ver qual é. Vejam lá ?vosselências? se agora tenho de pedir desculpas por não ser doutorado em Amália-Rodriguismo!
SnP: Já me perdi. Estava a falar do quê?
SR. ISCAS COM ELAS (IcE): Estava o amigo a dizer que o ?Lágrima? é sobre uma moça que deseja casar?
PdT: ?mas que o ?Estranha Forma de Vida? é sobre uma moça que está de esperanças.
SnP: Eu explico. No ?Estranha Forma de Vida?, a moçoila é assim ? como dizê-lo? ? uma doidivanas. Na Graça, em Alfama, Madragoa, Mouraria, Bairro Alto, todos lhe conhecem a fama. E mais que a fama.
IcE: Bolas, isso é muito bairro!
SnP: Ui! E um dia, a moça descobre que está grávida. É uma bronca das antigas. Os pais não sabem. E ela também não sabe.
PdC: Ela não sabe que está grávida?
SnP: Ela não sabe quem é o pai.
IcE: Diacho, isso é uma bronca das antigas!
SnP: Foi o que eu disse. Vai daí, a barriga começa a crescer-lhe e os pais descobrem e obrigam-na a casar.
PdC: Ah! Então também mete casamento! Eu tinha razão!
SnP: Mas é diferente. O rapaz com que ela vai casar não é o pai do filho. Ou então pode ser, ela não sabe. Ninguém sabe. O filho dela, no fundo, vai ter muitos pais. É a chamada ?Estranha Forma de Vida?.
SR. CARAPAUS DE ESCABECHE: Bom, a conversa está muito boa, mas afinal quem é que paga aqui a despesa?
Jackie Brown (1997)
Cena: Traficantes discutem armas à venda na TV
Versão: Telenovela das 9
Por João Tordo, guionista de ?Liberdade 21? e ?Pai à Força?. Escreveu três livros, incluindo ?As 3 Vidas?
INTERIOR ? APARTAMENTO DE PIPINHA ? DIA
O apartamento de Pipinha (Bridget Fonda) é um espaço aberto com dois sofás ? um amarelo, o outro cor-de--rosa ? e um plasma à frente destes. Sobre uma mesa rasa de vidro há uma enorme bandeja com dez tipos de fruta (manga, papaia, abacate, etc.), croissants, ovos mexidos, bacon, café, e outras iguarias intocadas.
Bernardo Vasconcelos e Sá (Samuel L. Jackson) segura na mão uma chávena de chá e vai girando repetidamente uma colher no interior desta. Está de fato e gravata de cores berrantes. Salvador Rebelo da Cunha (Robert de Niro), ao seu lado, usa uma camisa aos quadrados e um pullover azul-marinho por cima dos ombros.
Na televisão, raparigas em fatos de banho que imitam a bandeira portuguesa têm espingardas automáticas nas mãos e disparam para o infinito, num anúncio violento a armamento: ?GAJAS COM ARMAS?.
BERNARDO: Salvador, está a prestar atenção?
SALVADOR: Hum-hum.
BERNARDO roda a colher dentro do chá.
BERNARDO: Tenho uma coisa muito importante para lhe dizer.
A câmara filma a expressão intensa e preocupada de SALVADOR durante alguns minutos de silêncio.
BERNARDO: Está a ver aquela TEC-9? O tio Francisco diz que é a melhor arma automática do mercado, e agora leva-a nas caçadas. Acha normal? Caçar lebres com uma arma daquelas? Mal empregada?
SALVADOR: Hum-hum.
BERNARDO: Quero dizer, a arma é caríssima. Importada da Áustria.
BERNARDO olha para a chávena
BERNARDO: Querida, vá buscar mais chá de tília, sim?
O plano abre e vemos PIPINHA, sentada muito direita no outro sofá, o cabelo pintado de castanho cor-de-mel, com grandes canudos. Tem uma enorme barriga de grávida. PIPINHA levanta-se, a custo, dá um passo na direcção da cozinha, e cai redonda no chão.
PIPINHA: (sussurra) Salvador, eu amo-o?
SALVADOR e BERNARDO olham para trás de relance.
BERNARDO: Mas o que é que ela tem? Parece que é parva, a atirar-se para o chão.
SALVADOR levanta-se e vai até junto de PIPINHA, que está deitada no chão, a cor do cabelo combinando perfeitamente com a cor da carpete.
PIPINHA: Salvador, estou grávida da sua prima? e traí o Bernardo com o rapaz da oficina? mas é a você que eu quero. Eu amo-o, Salvador.
SALVADOR: Hum-hum.
BERNARDO, apesar de estar a um metro de distância, não consegue ouvir a conversa. O telefone toca na cozinha. BERNARDO roda a colher dentro do chá.
BERNARDO: Ó Pipinha vá atender, vai?
PIPINHA: De momento é complicado, Bernardo.
BERNARDO: Não me obrigue a ir aí arrancar-lhe um bracinho, ?tá bem?
SALVADOR vai atender o telefone.
SALVADOR: (atende) Hum-hum.
PIPINHA: Quem é, amor da minha vida? Amo-o tanto.
SALVADOR: É o tio Francisco Ulrich de Menezes.
BERNARDO levanta-se muito depressa e corre para o telefone.
BERNARDO: (ao telefone) Tio Chico, é o Bernardo! (pausa) Está onde? Está na cadeia? Mas o que é que está a fazer na cadeia? (pausa) Estava a conduzir bêbedo com uma granada no bolso? E prenderam-no por causa disso? (pausa) Que estúpidos. Vou já para aí.
BERNARDO veste o casaco.
BERNARDO: Vou buscar o tio Chico à prisão, já volto. Pipinha, levante-se do chão. Parece que é parva.
BERNARDO sai. PIPINHA e SALVADOR trocam olhares intensos. A câmara filma os olhares de um e outro, alternadamente, durante largos minutos.
PIPINHA: Quer fazer amor, Salvador?
SALVADOR encolhe os ombros.
SALVADOR: Hum-hum.
Beijam-se.
Pulp Fiction
Cena: Os McDonald?s na Europa
Versão: Épico Bíblico
Por Luís Filipe Borges, autor de ?Sou Português e Agora??, anfitrião de ?5 para a Meia-Noite?
Erasmus Carlus (Samuel L. Jackson) e Robertus Carlos (John Travolta) são dois capangas dos imperadores, os terríveis irmãos Leandrus & Leonardus, de quadriga pelas ruelas de Roma à procura do endereço de um senador desleal aos patrões. Robertus acaba de chegar dos Açores.
ROBERTUS: Dizei lá o que desejais saber?
ERASMUS: Os bárbaros lá falam todos daquela maneira?
ROBERTUS: Não. Só os micaelenses é que têm o sotaque tido como ?açoriano?, só que São Miguel é a maior ínsula e onde vive a maior parte da população? a maior se não contarmos com as vacas, claro.
ERASMUS: Vacas, Robertus Carlus?
ROBERTUS: Sim, Erasmus Carlus, vacas. Há ínsulas com mais cabeças de gado do que pessoas.
ERASMUS: Mas são essas vacas? sagradas, como os misteriosos relatos que chegam de certas partes recônditas da Ásia e garantem ser esse o caso entre determinadas populações locais?
ROBERTUS: Não, caralhus. Eles comem-nas. E bem. Mas inventaram mesmo um prato fictício para quem vem de Roma armado em tansus: ?Blhicas fritas com molho de naião?.
ERASMUS: Parece apetitoso. Quando lá for tenho de provar.
ROBERTUS: Não faria isso se estivesse no teu coirus. ?Blhicas? significa ?pénis? e ?naião? é homossexual.
ROBERTUS: Mas sabeis o que é mais interessante sobre os Açores? As pequenas diferenças.
ERASMUS: Por exemplo?
ROBERTUS: Eles têm as mesmas coisas que Roma, mas uma pastilha elástica, por exemplo, não é uma pastilha elástica: é uma ?gama?. Um alguidar não se chama alguidar, é uma ?pana?. Um abafa-palhinhas, além de ?naião? pode também ser uma ?zabela?.
ERASMUS: Zabela? não me ria tanto desde que vi aquela família de cristãos ser devorada por um leão bebé? e é verdade que o tabaco nos Açores é baratíssimo?
ROBERTUS: Baratíssimo, Erasmus. Não admira, eles plantam-no lá! Podes fumar um maço à vontade por menos de 400 sestércios (2 euros).
ERASMUS: Deveras?! E sabe bem?
ROBERTUS: Sei lá, meu. Deixei de fumar há um ano.
Sem comentários:
Enviar um comentário