sexta-feira, 18 de julho de 2008

Lendo - As Redacções da Guidinha

"As Redacções da Guidinha" foram uns textos de crítica de costumes, sob a forma de redacção escolar sem qualquer pontuação, escritos nos finais da década de 60 por uma suposta menina moradora no bairro da Graça, em Lisboa

O autor dos textos foi o escritor Luís de Sttau Monteiro e estes foram publicados entre 1969 e 1970 no suplemento humorístico do saudoso "Diário de Lisboa", chamado "A Mosca". Esta personagem viria a aparecer mais tarde, já depois do 25 de Abril no semanário "O Jornal".

No tempo, Marcelo Caetano substituíra Salazar na presidência do concelho do governo e tinha prometido uma abertura política do regime, que ficou conhecida por "Primavera Marcelista". Foi no sentido de aproveitar esta efémera e pseudo-abertura que surgiu o suplemento "A Mosca", procurando dizer a brincar algumas coisas que até então não se podiam dizer.

"As Redacções da Guidinha" foram reunidas em livro e publicadas pela Areal Editores à cerca de cinco anos. Um excelente documento para que se procure compreender melhor os últimos anos da ditadura.

Aqui fica uma das Guidinhices:

O PAI NATAL

"Tretas tretas tretas a mim é que não me levam mais era o que faltava ou um ou outro é um aldrabão disseram-me que o pai natal descia pela chaminé e eu acendi o fogão para lhe queimar o rabo para ele dar um grito para eu o ver e nicles quem ficou com o rabo a arder fui eu que levei bumba no toutiço por ter gasto gás é só para ver como as coisas são disseram-me que ele trazia presentes do céu e o que ele me trouxe foi uma camisola que eu vi numa montra duma loja em saldo com o preço e tudo isto quer dizer que o Céu fica na Rua dos Fanqueiros ou que me aldrabaram por eu ser criança é o que eu digo mentem à gente mal a gente nasce e depois queixam-se de que a gente em grande queira ir para a política outra coisa que o pai natal me deu foi um compêndio de Ciências Naturais aprovado para o primeiro ano ora abóbora que se eu fosse má até ficava a pensar que o pai natal é o meu pai o que vale é que eu sou boa até ver sim até ver que se me pregam outra partida como esta vão ver como é que eu sou por dentro porque lá por dentro sou má como as cobras se julgam que eu saio à minha Mãe enganam-se lá no fundo eu saio ao meu pai mas não quero que se saiba para salvar o toutiço que se ele adivinha isso é bumba no toutiço até mais não outra malandrice que me fizeram foi darem-me um cavalinho de madeira que o meu avô comprou para levar à maternidade quando eu nasci a pensar que eu era menino mas o diabo do velho quando viu a enfermeira mudar-me a fralda meteu o cavalinho no bolso e foi a correr comprar uma roca de prata porque nesse tempo o plástico ainda era caro e levou o cavalinho para casa para quando viesse um menino e como nunca veio porque em Paris deixaram-se de fazer coisas dessas e agora fazem outras o tal cavalinho foi escondido numa mala muito velha onde eu o encontrei há mais de cinco anos estou farta de brincar com ele sem ninguém saber e vai este ano bumba apareceu-me no sapato como se fosse um presente do pai natal assim não vale abóbora que ou a gente é séria ou não é isto até faz com que se perca o respeito pela família terrestre e pela família celeste que o meu pai queira enganar o pai natal vendendo-lhe cavalinhos velhos e Compêndios de Liceu ainda eu entendo agora que ele os compre se calhar pelo dobro do preço é que não entendo nem à bala são estas coisas que fazem a gente perder a fé e depois espantam-se outra porcaria que me fez o pai natal foi dizer ao meu pai que este ano os presentes eram fracotes por causa da crise que há no Céu mas então se aquilo é igual à Terra para que é que lhe chamam Céu anda a gente a privar-se de coisas para ir para o Céu e chega lá e bumba aquilo é como a Graça ou como o Areeiro eu é que não vou nisso e se as coisas não mudam para o ano faço de conta que não sei da crise e mando uma reclamação para o deputado que me representa na assembleia e o pai natal vai ver como é que as moscas picam para aprender a ser profissional a valer que isto dum pai natal amador não interessa a ninguém e muito menos a esta vossa GUIDINHA que não está cá por ver andar os outros."

Luís de Sttau Monteiro

5 comentários:

Lúcia Isabel Ribeiro Sousa disse...

pá, acho que andamos todos metidos à besta com os costumes. Já eu também ando a ler "Os Meus Problemas", que afinal sao os problemas de todos os portugueses, de Miguel Esteves Cardoso. Se nunca o leste, era de bom tom que o fizesses, ainda te ris um bom bocado.
Beijo e vê se vais dando notícias :)

Isabel Abreu disse...

Viva!
Esta da Guidinha não conhecia. Adorei, sobretudo aquela da familia terrestre e da familia celestial.
« E bumba vai dai que também vou fazer uma reclamação ao deputado que me representa na assambleia porque si as coisas não mudam vai sentir como as moscas picam» jejejeje

Cumprimentos cordiais,
Ysa

Carloressu disse...

sem dúvida uma pérola, é pena faltar a pontuação. Mas por outro lado até é bom que assim vamos nos habituando ao novo acordo ortográfico.

Alix disse...

OH Nuno pamor de Deus onde é k se arranja isto?
qual é a editora? tenho umas suadades imensas da Guidinha da minha infancia.

Nuno Morna disse...

Meu caro Alix,

Conforme refiro no post a editora é a Areal Editores. O livro pode ser encontrado na Webbom http://www.webboom.pt/ficha.asp?id=76078 e penso que a Bertrand o poderá ter e se não for esse o caso pode sempre encomendá-lo.
Um grande abraço

Nuno