Steven Sebring filmou-a durante 11 anos e o resultado é "Dream of Life", que estreia hoje.
Patti Smith está atrasada e tudo o que temos é o contacto da sua agente em Itália. Que não atende o telefone. O café, onde os empregados falam hebreu com os clientes, vai esvaziando. Já não sabemos se os nervos têm a ver com a perspectiva de encontrar Patti ou com a perspectiva de não encontrar Patti. Ela aparece, ao fim de uma hora. Tinha estado a escrever e perdera a noção do tempo.
"Não esteja nervosa. Eu estou mais nervosa, não podia estar com pior aspecto. Quer dizer, olhe para mim: tenho calças de pijama. Dormi com estas roupas. Até dormi com uma camisola porque o meu sistema de aquecimento não estava a funcionar. Não lavei os dentes nem nada, portanto está a ver-me em desvantagem." Logo ela, que supostamente é um "ícone da moda", brinca. Patti Smith é sempre a primeira a desfazer leituras mitológicas. Em "Dream of Life", o documentário que o fotógrafo Steven Sebring fez depois de filmá-la durante 11 anos (esta semana numa sala em Lisboa), Patti desabafa: "É tão embaraçoso. Tem imensa piada quando as pessoas perguntam: 'Como é que se sente por ser um ícone rock?' Quando dizem isso, penso sempre no Monte Rushmore." Dizer que ela é a madrinha do punk é ter uma visão redutora de alguém que insiste em ser considerada em toda a sua inteireza - como mãe, como cidadã de voz activa, como poeta, como artista plástica.
Patti recebe-nos na sua casa na West Village duas vezes: a primeira imediatamente antes das eleições americanas, a segunda imediatamente depois. Das duas vezes, Nova Iorque está debaixo de um dilúvio. A conversa tem lugar no primeiro andar, numa sala que tem todo o ar de ser o espaço da casa onde Patti passa mais tempo, o seu local de trabalho: uma mesa de ferramentas dominada por instrumentos de pintura, lápis e marcadores, a prancha junto a uma das janelas, com provas de polaróides, uma desarrumação criativa que dificulta o retrato de conjunto. Uma grande fotografia emoldurada do amigo William Burroughs preside a tudo isto, mas, passado algum tempo, aquilo que a memória reteve são os objectos que reconhecemos do filme de Sebring ou da exposição de Patti Smith na Fondation Cartier, em Paris, no ano passado: a velha guitarra Gibson oferecida por Sam Shepard nos anos 70, a cristaleira com o retrato de Rimbaud, uma edição antiga do livro "Auguries of Innocence", de William Blake, ou a condecoração recebida em 2005 do Governo francês, a mais alta insígnia atribuída a artistas e escritores em reconhecimento do seu contributo para as artes.
A primeira conversa é interrompida pela chegada do galerista de Patti, que vem buscar reproduções autografadas de polaróides. Uma delas é um retrato difuso da alemã Waltraud Meier, a sua cantora de ópera preferida, que fotografou em Munique nos bastidores de "Tristão e Isolda". Patti sempre gostou de ópera, mas era uma fã dos românticos italianos. Até que, um dia, a amiga Susan Sontag lhe disse para esquecer Puccini e experimentar Wagner. "Esquecer Puccini! Só porque tinha êxitos? E o que é que fazíamos com Smokey Robinson?", brinca Patti. "Mas é verdade que acabei por gostar muito de Wagner."
A serenidade de Patti impõe uma atmosfera acolhedora. Nada nela é ensaiado e há nisso uma espécie de nobreza (sim, mas como explicar isso aos amigos que querem saber "como foi?"). "Em mais do que um sentido, Patti Smith é a visionária do rock'n'roll definitiva, não só pelo que fez, mas também por causa do que não fez", escreveu Jefferson Hack na revista "Another Magazine", e é bem visto.
A conversa começou pelo último concerto que ela deu em Lisboa, porque a data estava a pedi-las - falámos com ela a 28 de Outubro de 2008, precisamente um ano depois.
Sem comentários:
Enviar um comentário