domingo, 5 de outubro de 2008

Entrevistando - Fernando Tordo à Visão

Aqui fica a excelente entrevista dada por Fernando Tordo à Visão, conduzida pela mão sabedora de Miguel Carvalho.

Numa tarde de Setembro, com o Coliseu descarnado diante dos olhos, o cantautor de longo curso prefere conjugar os dias no presente do indicativo do verbo estar. Vivo. Sem perder de vista um futuro mais que perfeito.
Tordo é maior do que uma vida: 60 anos cumpridos este ano, 44 de carreira. Melhor é fazer a soma, pois na sua existência habitam vivências que não cabem nas contas do comum dos mortais. E nem seria preciso falar dos festivais da canção, das dezenas de discos editados, das peças de teatro escritas e interpretadas, dos poemas do livro Quando Não Souberes, Copia, do spaghetti literário de Fantásticas, Fingidas e Mentirosas, ou das pinturas agora (re)descobertas. Ao longo de quase três horas de conversa, o cantor não passou apenas o passado em revista. Passou os dias de hoje a limpo, fez as barrelas que entendeu e, ao relento, estendeu os dias que virão. «Resisti à minha custa, com as minhas canções e trabalho, sem depender de lóbi algum. Olho para toda a gente de cara levantada.»
Anda na estrada, de novo, num autocarro com os seus músicos, e nada falta ao estatuto de uma carreira assim. Acompanhado da Stardust Orchestra, Tordo prepara-se para dois momentos altos: dia 4, no Theatro Circo, em Braga, e dia 10, no Coliseu de Lisboa, onde receberá a medalha da cidade, e surgirá acompanhado de Rui Veloso, da fadista Carminho e dos Gato Fedorento.

O que é que ainda o motiva para andar na estrada?
Estou a fazer a demonstração de que é possível, aos 60 anos e aos 44 de carreira, fazer um grande espectáculo do homem de canções com uma grande orquestra. Sinto-me como nunca. Deixei de beber álcool e de fumar. É um processo diário. Faço-o com determinação, ajudado por muita gente. Fiz uma dieta, perdi 17 quilos em quatro meses! Se não fosse assim, não conseguiria fazer este espectáculo.

Mas há a ideia de que o cigarro e o álcool compõem a imagem do artista…
Com o desgaste da profissão, isso vai-se adulterando. Tive uma resistência inimaginável, mas não há necessidade. O melhor ainda está para vir. Não me sinto com 60 anos. E aos 70 vou cantar ainda melhor…

Não está nada preparado para se tornar memória…
Que me lembre, sou memória desde os 36 anos. Aos 34, já era o veterano! [risos] Quem mantém uma carreira de tantos anos só pode ser permanentemente inovador, caso contrário ficava pelo caminho. Não é teimosia, é coerência. Se estou melhor do que aos 30 ou 40 anos, o que me impede de dizer isso às pessoas?!

Ainda há espaço para um cantor assim num país onde todos se acham no direito de cantar e escrever?
A minha profissão está banalizada, é verdade. As televisões abriram portas às cantiguinhas, entretenimento de borla e três minutos de glória. O resto da vida é de sofrimento, neurose e depressão. Os jovens explorados nos programas estão ou vão ficar nesse estado. Passam-se anos sem vermos um cantor ou compositor a sério na televisão. Ainda há dias me vi na RTP Memória. Confrontado com uma imagem, uma fotografia, percebo que tenho 60 anos. Mas confrontado com a vida, não.

Teve uma infância feliz?
Sim. Nunca passei fome, o meu pai viveu do trabalho, a minha mãe era doméstica, está viva ainda. O meu pai era industrial de cortiças, trabalhava para a construção civil, fazia isolamentos acústicos e térmicos. Há uns anos fui operado à vesícula, no Hospital de Santa Maria, e meteram-me num quarto que tinha sido revestido pelo meu pai. Emocionei-me. Politicamente, ele estava muito ligado aos comunistas e anarquistas, embora não o dissesse...

Queria ser o quê em miúdo?
Só pensava em música. Na rua do bairro de Alvalade onde a minha mãe ainda vive havia um cabeleireiro que, no Natal, tinha sempre uma árvore cheia de brinquedos pendurados. Teria uns 6 anos e a minha mãe disse-me para ir lá escolher um brinquedo. Havia camisolas, chapéus, pistolas, carros de combate, soldadinhos de chumbo e uma corneta de plástico, foleira. Tirei a corneta! [risos]

Nos anos de estudante, o que o marcou?
O Colégio Moderno e o meu professor de Música, Joel Mascarenhas. Um homem fascinante, completamente contra o programa de ensino da música. Era músico da Orquestra Sinfónica e ainda me acompanhou em festivais. Era muito virado para frente, com um espírito livre.

Foram os primeiros cheiros a subversão?
O Colégio Moderno era assim, havia um espírito de liberdade. Foi lá que soube de coisas muito chatas. As manhãs em que a PIDE ia buscar o Mário Soares eram sinistras. Ainda tenho a imagem dos carros pretos dos pides e a cara muito marcada da Maria Barroso. Não será a palavra correcta, mas tive a felicidade de estar informado muito cedo sobre o que corria mal neste país.

Era bom aluno?
Portava-me mal, tive de ir muitas vezes ao gabinete do pai do Mário Soares, o doutor João Soares. Mas tirei vários 19 com o Urbano Tavares Rodrigues. Eu era especialista em Cantigas de Amigo, de Escárnio e Maldizer.

Chamou a esses tempos «imitação da felicidade»…
A minha geração viveu várias coisas à escala nacional e internacional. Isso marca uma diferença. Havia um espírito de sociabilidade, de vontade. Hoje, vivemos uma situação miserável no plano moral e dos valores. Mas o 25 de Abril há-de ter cada vez mais importância. A malta nova está a perceber que lhe ocultaram uma data de coisas. E pessoas.

Como descobre a música?
Aprendi a tocar guitarra no colégio, com o meu amigo Bastos Gonçalves. Em 1957, aparecem os Shadows e o Bruce Welsh era o meu ídolo! Foi o gajo que me «ensinou» a tocar guitarra. Toquei com os Deltons e os Sheiks. Mais tarde, o Luís Villas Boas diz-nos: «Vocês são todos uma cambada de pirosos e de foleiros, só ouvem merda!» E, em casa dele, começaram as doses industriais de Count Basie, Duke Ellington, Sinatra, Tony Bennett. A partir daí, um gajo entra na luta sistemática pela excelência. Mesmo que nunca lá chegue.

Fez uma dupla única com Ary dos Santos, mais de 600 canções...
Ui, talvez mais, misturando teatro e tudo. Mas deitávamos os papéis fora. Um crime! Razão tinha o Luís Villas Boas, que assistia às nossas sessões e ia apanhar alguns...

Comparou o Ary ao Vinicius…
Disse que era melhor! São dois grandes talentos poéticos, mas na escrita da língua portuguesa para canção, a estrutura poética do Ary é superior. E, até agora, insubstituível. Em tempos, uma certa intelectualidade acusou o Ary de se ter vendido à escritazinha para canção. É preciso ler a sua obra para perceber o poeta que ele era. Com o Ary, a Garota de Ipanema nunca seria só uma garota que passava. Na escrita de canções, o Chico Buarque é o que, no Brasil, mais se aproxima do Ary. Não só por causa da preocupação social e política presente, mas também pela organização da escrita. O Ary não conseguia dar uma nota musical, mas tinha uma capacidade de apreensão da rítmica inquestionável. Raramente musiquei um poema dele. Foi tudo ao contrário. Cavalo à Solta, Estrela da Tarde, a Tourada, todas essas canções, foram criadas para uma estrutura musical prévia. Funcionava muito bem.

Quase não era preciso falar…
As nossas grandes conversas foram a fazer canções. Vivemos no mesmo prédio uns sete, oito anos, mas tínhamos vidas, amigos, sítios e hábitos diferentes. Depois, ele apresentou-me a intelectualidade lisboeta e eu fiz o mesmo com os músicos. Era uma parceria sagrada, mas tão intensa, que, a dada altura, já quase não nos podíamos ver.

Como é que a Tourada passou na censura?
Ninguém leu as entrelinhas. Ou se alguém percebeu, calou-se. Não queríamos fazer escárnio da tourada. Aprendi a terminologia nas transmissões da RTP, em menino. O Ary não percebia nada do assunto, mas ficou fascinado, quando lhe entreguei umas folhas com todos os termos da tourada. Ficou doido, ao ler a palavra «inteligente» – há um «inteligente» na tourada – pois deu-lhe o pretexto para se referir a uma pessoa ainda viva, mas de quem não vou falar. O texto está actual, infelizmente.
A canção descreve tudo o que temos à nossa volta. Até parece que foi a sociedade que acabou por se encaixar na Tourada…

Numa entrevista, o Ary distinguiu o maricas do homossexual pelo carácter. O Fernando já se referiu, num livro seu, ao poder do lóbi gay. Isto anda tudo ligado? O Ary era homossexual e foi, talvez, a primeira figura pública a assumi-lo, antes do 25 de Abril. Hoje, existe um potentíssimo lóbi gay, no nosso país. Em muitos países da Europa há ministros, presidentes de Câmara, outras figuras públicas, que se assumem. Mas, em Portugal, o lóbi gay tem uma componente de ocultação terrível.

Hoje, o Ary não faria parte desse lóbi?
O Ary não gostava da bichice nem da mariquice. A ocultação desagradava-lhe profundamente. E este lóbi gay jamais se denunciará. Compreendo que não queiram fazê-lo tão abertamente como o Ary, mas também não é aceitável que ocultem essa condição em nome de um jogo de grande influência que prejudica muita gente.

Guarda alguma amargura do 25 de Abril?
Os partidos quiseram ditar uma cartilha de valores. E alguns ainda querem. Mas os valores são sempre individuais. A sociedade ainda recupera muito lentamente das fracturas violentas daquele tempo, em parte por culpa dos partidos. Eu próprio fracturei relacionamentos com amigos. Estou arrependido disso e tento recuperar.

Como olha para os seus anos de militância no PCP?
Fui militante até 1991. Dei tudo, nunca virei as costas. Não me arrependo, mas jamais voltarei a estar dentro do redil de um partido. Cantei em aldeias, com lama até ao pescoço, de borla. Passei tempos fantásticos e conheci pessoas fantásticas. Foi uma experiência impressionante até concluir que não há nada pior para a liberdade individual. Cantores dessa órbita política sentiram-se maltratados e humilhados pelas máquinas partidárias.

Mesmo assim, no pós-25 de Abril, sente que fizeram o que deviam, ou seja, cantaram o que era preciso?
Não nos decretámos artistas no dia 26 de Abril. Já havia um percurso, e isso deu uma bagagem enorme. Foi importante o que fizemos, naquele momento. Mas detrás já vinha a pequena história, a canção que ajudou a que o 25 de Abril acontecesse. Na maioria, não eram canções políticas. Fazíamos uma espécie de jornalismo de cantigas. Uma canção sobre a carestia de vida, outra sobre os fachos, etc. Mas não indicávamos um caminho.

O que é ser de esquerda e direita hoje?
A mais profunda vivência das artes está desde sempre ligada à esquerda. E essa é a minha área. Quanto mais pensante, solidária e limpa for, melhor será a esquerda. Quando isso não acontece, lembro-me sempre de que há muita gente de direita interessante.

O que pensa de José Sócrates?
Ele gostará muito do seu país, mas não pode dizer que as coisas estão bem quando estão mal. É um ruído de fundo. Sócrates ainda não percebeu que não é pelo facto de gritar que tem mais razão.

Foram os dias passados com Saramago, em Lanzarote, que o converteram ao iberismo?
Não, mas concordo com ele. Sou iberista desde miúdo, tempo em que era preciso autorização para ir ver futebol a Cádis! Os espanhóis não eram o que nos ensinavam na escola. O nosso futuro passa por uma união com Espanha. E não só por razões económicas…

Lançou o disco dos prémios Nobel, em Espanha…
Em Portugal, ninguém o quis! Pensei oferecê-lo para distribuição, mas chegaram a desculpar-se com falta de pessoal na promoção. Isto, numa das maiores editoras do mundo. Oxalá já não seja! Felizmente, a maior editora discográfica já é a Internet. Quando disse em Espanha que tinha musicado 12 prémios Nobel da Literatura, quiseram logo editar. E a apresentação do disco cá, foi tratada pelo Instituto Cervantes! Ah, e já agora, também estou registado na Sociedade de Autores, em Espanha.
A edição do disco aqui só foi possível graças ao Ministério da Cultura português.

Como caracteriza o mercado musical português?
Há alguma abertura em relação a outras linguagens. Mas passamos do oito ao oitenta, de música pimba a festivais de jazz. O resto, que é a maioria, não tem palco. As pessoas nem sabem que os discos são lançados.
A RTP e a RDP-Antena 1 são excepções, mas o analfabetismo musical está instalado. Não critico por não passarem mais portugueses, é por passarem má música estrangeira. Alguns portugueses estão a ser tratados como cantores do regime. Involuntariamente, mas estão.

Nunca fez cedências comerciais?
Se, com 22 anos, tivesse gravado coisas de compositores mexicanos, tinha ficado milionário aos 27! O Villas Boas dizia-me que era melhor seguir o caminho das pedras, se quisesse ser alguma coisa na música. Tive a felicidade de conhecer pessoas fulcrais, no momento das grandes decisões. Sei o que é mediocridade, porque conheci as coisas boas. Mas muitos foram carne para canhão de editoras, partidos, etc. Não temos grandes empresários, nem agentes musicais. Temos, isso sim, grandes sacadores de dinheiro. Num país como o nosso, tão pequeno e mal estruturado, os artistas não podem ser tratados como máquinas de fazer dinheiro. Os da minha geração não resistiram a tudo por ter bons empresários, resistiram porque são bons.

A dada altura da vida, refugiou-se nos Açores. Onde fez três discos. Foi uma fuga ou um recolhimento?
Houve quem dissesse que tinha fugido para o Canadá, por causa de dívidas... Tinha um bar chamado Cantador-Mor, junto do Castelo, em Lisboa, onde me encontrava com amigos, gente da música e do teatro. Mas comecei a não ter tempo.
O Adeus Tristeza foi um disco que compus em algumas tardes, no bar, já nos limites da resistência. Quando decidi ir para o Faial, em 1983, saí do bar directamente para os Açores, às seis da manhã.

Houve outros motivos?
Questões amorosas. Mas quem as não tem? É isso que nos faz estar vivos, também. Durante um ano, fui enviando as minhas coisas para o Faial. Nasce daí a minha colaboração e grande amizade com o François Rauber, orquestrador do Brel. Telefonei-lhe antes de ir e, quando já estava nos Açores, ele pediu-me para lhe enviar uma cassete «para escutar o clima». Mandou-me uma carta a dizer que fazia as orquestrações das minhas canções com muito gosto. Nunca fui tão solicitado como nesse período. Os discos ganharam os prémios que havia. As pessoas olham de forma diferente para o desgraçadinho que se foi embora por desgosto…

Que Fernando regressou, ao fim de três anos e meio?
O que me fez regressar foi o casamento. Os Açores significaram uma aprendizagem de vida que não vem nos livros. Foi uma vivência inesquecível e devo-a aos açorianos. Muita gente dizia: «Açores? Eh pá, isso é do pior que há, é só reaccionários.» Mas nunca fui tão bem tratado. Não esqueço, por exemplo, a cortesia e delicadeza do então presidente do Governo Regional, Mota Amaral.

No Continente, sentiu que pagou uma factura por ser de esquerda?
A marginalização a que fui sujeito durante muitos anos está aí como prova. Mas não estou zangado com ninguém. Compreendi. Outros foram mais marginalizados, mais perseguidos. Morreram por dentro.

Precisou de ajuda psiquiátrica para superar algumas situações. Quer falar disso?
As opções, os isolamentos, as zangas, provocaram-me algumas disfuncionalidades. Uma delas foi o álcool. A dada altura, temos a consciência de que nos vamos matar de alguma maneira. Já não tinha prazer, era um sofrimento diário. Há dois anos, um contacto salvou-me a vida. Comecei a ver as coisas de outra maneira e fiquei de bem com tudo o que estava para trás. A minha mulher e o restante agregado tiveram uma acção fulcral. E disse para mim: «Vou fazer todos os possíveis para ficar mais tempo com esta gente. Merecem.» Também pesou a questão profissional. Não há copos nem cigarros que sejam mais importantes do que vestir um fato, subir a um palco, e cantar as minhas canções para as pessoas.

Fez teatro, publicou poesia, agora mostrou os seus quadros...
A pintura é uma grande loucura, mas só é uma descoberta para o público. Já pinto há muitos anos. A qualquer hora. Às vezes, se não me ponho a pau, esqueço-me de ir aos espectáculos! [risos]

Copiou alguns Picassos, não foi?
Tenho Picassos fabulosos [risos]! Mas um gajo começa a imitar uma coisa simples com uma cagança do caraças, do género «isto até eu faço», e depois é o fazes! Só então percebemos o mundo deles. Foram espíritos livres. E isso é que temos de aprender. A liberdade é uma lição constante. Temos de libertar a cabeça e seguir a nossa própria linguagem. Dedico-me à pintura, porque há coisas que não sei expressar na música nem na poesia.

Tem tido outras inclinações?
Ainda hei-de fazer teatro a sério! É tardio, tenho medo de que a memória me atraiçoe, mas agora estou mais liberto, tenho outras experiências acumuladas. E quero escrever uma opereta, um grande musical.

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