quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Cinema - Manoel de Oliveira

Escreve Kathleen Gomes no sítio do Público:

Estamos habituados à frase “Manoel de Oliveira é um dos maiores cineastas do mundo”, não estamos habituados à frase “Manoel de Oliveira é o maior cineasta do mundo”. O autor é francês – se calhar, só a crítica francesa, decisiva no processo de reconhecimento de Oliveira, teria autoridade suficiente para afirmar uma coisa aparentemente tão audaz. E ela não é de agora, quando, apesar de tudo, seria mais fácil proclamá-lo – cem anos são cem anos, a vénia é recomendável.
Frédéric Bonnaud, ao telefone a partir de Paris, garante que nem sequer estava a ser irónico quando escreveu isso. “É uma graça, mas é real. Serge Daney, um grande crítico francês, costumava dizer, quando encontrava Oliveira, “eis o maior cineasta do mundo”, e Oliveira ria-se. A questão é que Daney acreditava mesmo nisso. E eu também.”
Foi o que levou o PÚBLICO a contactar críticos, exegetas e programadores da obra de Oliveira nos Estados Unidos, Espanha, Reino Unido e Portugal: o que é que encontram de particular no cinema do realizador português, o que é que faz dele, senão o maior, um dos maiores cineastas do mundo? É preciso avisar que o Oliveira deles não tem nada a ver com o senso comum – as descrições sobre as quais se metem de acordo são coisas como “ultracontemporâneo”, “lúdico”, “aventureiro” – mas também são espectadores incomuns, isto é, viram (e, nalguns casos, mais do que uma vez) a totalidade, ou quase, dos filmes de Oliveira.
“É muito fácil explicar por que é que ele é o maior cineasta do mundo”, diz Bonnaud. “O cinema, mesmo quando é um grande cinema feito pelos maiores cineastas, obedece a um certo número de regras que são intocáveis. O que é fascinante em Oliveira é que ele não respeita regra nenhuma. É alguém que opera quase como se não tivesse havido cinema antes dele – é preciso inventar ou reinventar tudo. É como um primitivo italiano que tem de inventar a pintura porque ela não existe antes dele ou como Jean Dubuffet ou Picasso, que não se contentam com os códigos da pintura, mas que a querem reinventar o tempo todo.”
“Manoel de Oliveira é a mais bela anomalia do mundo”, escreveu Bonnaud em 2000, num texto para um catálogo do Festival de Turim sobre o realizador, e era, evidentemente, um elogio. Aí, o crítico francês demonstra como Oliveira não faz nada como ninguém.
“Não existem cinco cineastas que sejam tão livres assim”, diz Miguel Marías, ex-director da Cinemateca Espanhola, figura tutelar da crítica em Espanha (e irmão do escritor Javier Marías). “A única certeza que se pode ter é que cada filme seu será uma surpresa: nunca é convencional, é sempre atrevido”, escreve, por mail.
Sim, Oliveira faz cem anos, mas para lá de tudo aquilo que é imediatamente impressionante nessa longevidade, o mais admirável é o que fez com ela, o “desprendimento e a liberdade que esse trajecto lhe dá”, como assinala o realizador João Mário Grilo, uma das pessoas que em Portugal mais consistentemente têm escrito sobre a obra dele. “O Oliveira tem essa coisa de não ser um clássico – é um cineasta com cem anos, mas não é um clássico. Está permanentemente a criar um efeito-surpresa, é capaz de fazer um filme mínimo a seguir a um filme máximo. Aliás, costuma fazer isso.”

À frente do cinema actual

O leitor já percebeu: Oliveira é um caso à parte no cinema. Mas essa dissidência, fundadora de tantos equívocos e da divisão que existe sobre a sua obra, não é programática (no sentido de deliberada) ou puramente excêntrica, nem existe para contrariar as plateias (como, por vezes, os portugueses parecem pensar do seu cinema). As razões para isso derivam do facto de ter começado a filmar numa altura em que o cinema estava no começo, antes de muitas das inovações que viriam a transformá-lo (isso confere-lhe uma inteireza: “é como no cinema de John Ford, o mais importante são os valores que se desprendem do filme”, assinala Grilo), do seu invulgar percurso (as paragens “forçadas”, durante a ditadura; e o crescente ritmo criativo das últimas duas décadas).
João Mário Grilo nota, por exemplo, que um filme como Amor de Perdição (1978), objecto de escândalo à época, surgiu num contexto pós-Revolução, e era radicalmente diferente do cinema militante que estava a ser feito à altura. “De repente, o filme parece totalmente deslocado dessa ‘moda’. Ele apresenta uma certa retoma dos sentimentos num momento em que isso parece totalmente fora da ordem do dia. A grande questão do filme é se se pode amar, ainda, assim – a tal ideia do amor de perdição.”
Jonathan Rosenbaum, decano da crítica americana, diz que Oliveira “está à frente de muito do cinema que é feito hoje”.
Grilo, novamente: “É muito mais fácil, daqui por 20 anos, as pessoas enfardarem-se com o Bergman do que com o Oliveira. Bergman é alguém muito mais comprometido com o seu público”, porque os seus filmes, genericamente falando, lidam com “temas existenciais” que correspondem às preocupações da sua geração.
“Oliveira nunca está a trabalhar para um público”, distingue Grilo, e esta afirmação não deveria ser objecto de indignação – ninguém se escandaliza que Van Gogh não tenha pintado para um público (o que é inseparável da sua grandeza).

“Uau, de onde vem isto?”

O primeiro filme de Oliveira que o britânico Jonathan Romney viu foi Non, ou a Vã Glória de Mandar (1990). “Não sabia como classificá-lo. Não sabia se pretendia ser kitsch, se era satírico, ou até que ponto jogava com as convenções do cinema. Os filmes dele confundem as expectativas.” O artigo que Romney assina na revista Sight & Sound deste mês, a propósito do centenário de Oliveira, é, no fundo, a recensão de um óvni – o texto é pródigo em adjectivos como “estranho”, “escorregadio”, excêntrico”, “obscuro”, “bizarro”. O cinema de Oliveira, diz Romney ao telefone, “é um género em si mesmo”.
Richard Peña, programador do New York Film Festival e um dos grandes divulgadores de Oliveira nos Estados Unidos – foi ele que organizou a primeira retrospectiva americana, “Manoel de Oliveira é a mais bela anomalia do mundo”, escreveu Bonnaud em 2000, no catálogo do Festival de Turim sobre o realizador, e era, evidentemente, um elogio em Chicago, em meados da década de 80 – reconstitui a primeira impressão que os filmes dele lhe causaram. “Apesar de ser um filme europeu, o efeito foi de estranheza. Os filmes estrangeiros em geral são muito diferentes do cinema americano, mas o Oliveira parecia vir de outro lugar e de outro tempo, quase. É como se a história do cinema tivesse tomado outro rumo. Os seus filmes parecem mostrar-nos o que é que o cinema seria se tivesse escolhido a via do teatro em vez da literatura.”
Randal Johnson, professor de Literatura Luso-Brasileira na Universidade da Califórnia (UCLA) e autor do único livro em inglês sobre Oliveira, publicado em 2007, conta: “Nós abrimos uma retrospectiva aqui na universidade com Viagem ao Princípio do Mundo e a reacção das pessoas foi: ‘Uau, de onde é que isto vem?’ Elas saíram dali com vontade de ver mais filmes dele.”
Oliveira é um autor praticamente confidencial nos Estados Unidos, Reino Unido e Espanha, um realizador com seguidores nos circuitos cinéfilos e minorias exíguas (Rosenbaum nota a existência de um culto recente de “filmes exigentes” na Internet, nos blogues) – excepto em França, onde, como assinala Bonnaud, o facto de se ter associado a actores conhecidos como Catherine Deneuve, Michel Piccoli ou John Malkovich, lhe permitiu “tocar um público mais amplo”.
Miguel Marías nota que ele é, hoje, um cineasta mais divulgado do que há 20 anos, ou seja, a probabilidade de um crítico espanhol ter contactado com a sua obra é maior, mas isso significa que “juntamente com os cinéfilos e críticos que o admiram, agora há os que viram algum filme e o detestam”. “Oliveira ainda está a ser descoberto”, diz Romney. “E vai continuar a ser descoberto.” Não é só no Reino Unido – em Portugal também. “Não sei com quem compará-lo. No cinema não há ninguém. Na literatura, há o Tolstoi, que também tem uma produção inesgotável. Mas Tolstoi não é tão divertido”, afirma Romney.
E não é humor britânico.

Kathleen Gomes



Manoel de Oliveira nasceu a 11 de Dezembro de 1908 e mantém aos 100 anos uma juventude invejável.
Aqui fica uma cronologia da sua vida:

11 de Dezembro de 1908 - Nasceu Manuel Cândido Pinto de Oliveira no Porto, mas foi registado no dia seguinte.
Filho de Cândida Pinto e Francisco de Oliveira, o primeiro fabricante de lâmpadas em Portugal, teve dois irmãos, Francisco e Casimiro, e dois meio-irmãos.
Estudou no Colégio Universal, no Porto, e num colégio de jesuítas perto de La Guardia, Galiza.
1928 - Inscreveu-se na Escola de Actores de Cinema e entrou como figurante no filme Fátima Milagrosa, de Rino Lupo.
1929 - Começou a rodar o primeiro filme, Douro, faina fluvial, com uma câmara oferecida pelo pai e com a ajuda do amigo e fotógrafo António Mendes.
1930 - Fez o documentário Hulha Branca, sobre a empresa do pai.
1931 - A 19 de Setembro de 1931, no dia em que morreu Aurélio da Paz dos Reis, considerado o pai do cinema português, antestreou em Lisboa o documentário mudo Douro faina fluvial, no Congresso Internacional da Crítica. Foi vaiado pelo público. O dramaturgo italiano Luigi Pirandello esteve presente na estreia e estranhou a pateada.
1933 - Participou como actor em A canção de Lisboa, de Cotinelli Telmo.
1938 - Venceu a II rampa do Gradil num carro Edford. As corridas de automóveis, assim como o atletismo, são uma das suas paixões de juventude.
1940 - Casou a 04 de Dezembro com Maria Isabel Brandão Carvalhais e abandonou o automobilismo.
1941 - Estreou Aniki Bobó, baseado no conto Meninos Milionários, de Rodrigues de Freitas.
1941 - Nasceu o primeiro dos quatro filhos do realizador.
1946 - Em entrevista à revista Filmagem admitiu abandonar a carreira. Dedica-se à viticultura no Douro.
1955 - Fez um estágio na Agfa, em Leverkussen, Alemanha, sobre cor aplicada ao cinema.
1963 - Estreou O Acto da Primavera e é levado pela PIDE para interrogatório em Lisboa, onde conhece o escritor Urbano Tavares Rodrigues.
1964 - Recebeu Medalha de Ouro no Festival de Siena, Itália, com Acto da Primavera.
1965 - Cinemateca Francesa realizou retrospectiva da sua obra.
- Dedica a curta-metragem As pinturas do meu irmão Júlio à obra do pintor Júlio Maria dos Reis Pereira, irmão do escritor José Régio.
Entre 1971 e 1981 realizou a Tetralogia dos amores frustrados: O Passado e o Presente (1972), Benilde ou a Virgem Mãe (1974), Amor de Perdição (1978) e Francisca (1981).
1978 - Estreou na RTP a uma série de seis episódios a partir de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. O filme estrearia no ano seguinte.
1980 - Participou no filme Conversa acabada, João Botelho.
1981/1982 - Realizou Memórias e confissões que só pode estrear ou ser exibido publicamente depois da sua morte. Foi rodado numa casa no Porto onde o realizador viveu, conta com diálogos de Agustina Bessa-Luís e vozes de Diogo Dória e Teresa Madruga. O filme está depositado na Cinemateca Portuguesa.
1982 - Recebeu a Comenda da Ordem de Mérito da República Italiana.
1983 - Foi condecorado Comendador da Ordem de Artes e Letras de França.
1985 - Estreou o filme O sapato de cetim, de quase sete horas, e recebeu Leão de Ouro em Veneza pelo conjunto da carreira.
1987 - Em Julho estreou-se como encenador de teatro em Itália com um espectáculo baseado no conto De profundis, de Agustina Bessa-Luís.
1988 - Estreia do filme-ópera Os canibais que conta pela primeira vez com a participação de Leonor Silveira, uma das actrizes de eleição de Manoel de Oliveira.
1989 - Recebeu Comenda da Ordem do Infante D. Henrique pelo presidente da República Mário Soares.
1992 - Estreia mundial de O dia do desespero a 30 de Maio de 1992 na Expo´92, de Sevilha, em Espanha.
1992 - Recebeu o Leopardo de honra pelo conjunto da carreira no festival de Locarno, na Suíça.
1993 - Estreia mundial de Vale Abraão no Festival de Cannes.
1994 - Participou em Lisbon Story, de Wim Wenders, no qual parodia o cinema mudo e Charlot.
1995 - A Sociedade Portuguesa de Autores (SPA) atribuiu-lhe o Prémio Carreira.
1997 - Grande Oficial de Mérito Nacional pela República e do Governo Francês.
- Estreia Viagem ao princípio do mundo, filme com contornos autobiográficos e protagonizado por Marcello Mastroianni. Seria o último filme do actor italiano.
1998 - Em Setembro iniciou a rodagem em França do filme A carta, com Chiara Mastroianni.
2001 - Estreia Porto da minha infância, encomendando por Porto - Capital Europeia da Cultura. É um regresso de Manoel de Oliveira aos lugares de infância naquela cidade.
2002 - Aos 94 anos realizou o teledisco Momento, de Pedro Abrunhosa.
2003 - Encenou a peça Mário eu próprio o outro, de José Régio, em Roma, Itália.
2004 - Recebeu Leão de Ouro do Festival de Veneza, de homenagem à carreira, e exibiu O Quinto Império - Ontem e Hoje.
- Recebeu o Prémio Vittorio de Sica, em Itália.
2005 - Distinguido com a medalha de ouro do Círculo de Belas Artes de Madrid.
2007 - Distinguido com o Prémio Manuel Antunes 2007 por ser um «cineasta do Sagrado».
- Participou no filme colectivo Chacun son cinema, de celebração dos 60 anos do Festival de Cannes, com a curta-metragem Rencontre unique.
- Estreou Belle Toujours, de homenagem a Belle de jour, de Luis Buñuel, no Festival de Cannes.
- Estreou Cristóvão Colombo - O enigma no Festival de Veneza. Manoel de Oliveira e a mulher participam no filme.
- Distinguido com o American Film Institute Silver Legacy Award nos Estados Unidos.
2008 - Doutor Honoris Causa pela Universidade do Algarve.
- Retrospectiva nos Estados Unidos pela Brooklyn Academy of Music.
- Investido membro honorário da Academia das Ciências de Lisboa.
- Distinguido, em conjunto com o escritor António Lobo Antunes, com o Prémio Terenci Moix, de Espanha.
- Palma de Ouro pela carreira e exibição de Douro, faina fluvial no Festival de Cannes.
- Museu de Serralves inaugura exposição dedicada à obra de Manoel de Oliveira.
- Distinguido, em conjunto com a pianista Maria João Pires, com a Medalha de Ouro de Belas Artes 2007, atribuída pelo governo de Espanha.
- Homenagem no I Congresso da Cultura Ibero-Americana, na cidade do México.
- Distinguido com o Prémio Mundial do Humanismo, atribuído pela Academia do Humanismo da Macedónia.
- Projecção da curta-metragem Do visível ao invisível no Festival de Veneza.
- Realização de retrospectivas no Museu de Serralves e Cinemateca Portuguesa.
- Distinguido com o Prémio da Fundação Fellini, atribuído em Riminni, Itália.
- Inicia em Lisboa a rodagem do filme Singularidades de uma rapariga loura, a partir de um conto de Eça de Queirós, que deverá estrear no Festival de Cinema de Berlim.
2009 - Manoel de Oliveira espera rodar em Fevereiro o filme O estranho caso de Angélica, recuperando um projecto incompleto dos anos 1950, e apresentá-lo no Festival de cinema de Cannes.

Lusa

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