domingo, 28 de dezembro de 2008

Musicando - Dancehall

Muito interessante este artigo saído na Ípsilon (Público) da autoria de Vítor Belanciano:

Viajar actualmente para as Caraíbas com o objectivo de casar é uma banalidade. Mas nenhuma dessas cerimónias se desenrola nas traseiras de um bairro árido, tendo por mestre de cerimónias o cantor Sugar Minott, um ruidoso "sistema de som" e uma assistência de produtores e músicos. Mas foi isso que a fotógrafa e jornalista americana Beth Lesser e o marido, o canadiano David Kingston, escolheram para as núpcias.
Pode não ter sido o casamento que ambos imaginaram na adolescência, mas parece apropriado para quem passou mais de uma década a retratar a emergência de um fenómeno cultural conhecido como dancehall.
Na Jamaica, a música está em todo o lado. Não é só nos casamentos. Faz parte da vida quotidiana. O país tem uma indústria musical desproporcionada para o território pequeno e para a população reduzida que tem. As unidades sonoras móveis conhecidas como "sistemas de som" fazem parte da vida das zonas urbanas, estão presentes em qualquer artéria, providenciado música dançante às muitas camadas da população.
Por isso, conceber um livro de fotos que retrate a actividade da ilha requer trabalho de campo, estar lá, viver com os protagonistas. "Rapidamente nos misturámos no meio das pessoas" escreve Beth Lesser em "Dancehall - The Rise Of Jamaican Dancehall Culture." "Assistíamos a sessões de estúdio, almoçávamos, dançávamos, partilhámos tudo com aquela gente."
A proximidade de Lesser levou-a a captar o emergir de um som e de uma cultura diversa daquela que tinha sido predominante na Jamaica até então. Como ela aponta, em nenhum momento da história o reggae deixou de ser música dançável." Mas no emaranhado de tipologias que constitui o mapa musical da ilha - reggae, ska, dub, rocksteady -, o dancehall é o género menos preocupado com princípios místicos ou ideológicos e mais com o hedonismo. Como acontece sempre com os géneros nascidos no local, as histórias sobre a sua génese cruzam-se de forma confusa.

Combustível dos 80

As suas origens remontam aos anos 50, quando promotores jamaicanos conceberam "sistemas de som" móveis para os DJs passarem música em público, mas foi na década de 80 que o fenómeno alcançou expressão. É o espírito dessa época que é captado no livro e no CD do mesmo nome da editora Soul Jazz.
A designação era utilizada, nos anos 50, para nomear os espaços onde se ia dançar e, ao mesmo tempo, contactar com as novidades da música, da moda e dos comportamentos. Mas o termo só começou a ser empregue para nomear uma das ramificações da música jamaicana já no final dos anos 70. Aconteceu quando um dos produtores mais conhecidos da ilha, King Jammy, concebeu um tema com uma estrutura totalmente sintetizada no contexto de um "soundclash" (um "duelo" musical entre "sistemas de som").
Extraído de um teclado Casio, o tema era uma base rítmica instrumental enérgica, muito diferente do que se tinha feito até então. O impacto foi tal que rapidamente outros produtores começaram a fazer temas com características semelhantes. A identificação com o gosto popular foi tão vincada que o novo estilo haveria de ficar conhecido como dancehall, adoptando o nome das festas de dança onde emergiu. Se o combustível dos bailes nos anos 60 tinha sido o ska e o rocksteady, nos anos 70 haveria de ser o reggae de raiz clássica e nos 80 o dancehall.
O facto de o grande símbolo da música reggae e do movimento religioso rastafari, Bob Marley, ter morrido em 1981 pode ter contribuído para que as alternativas ao reggae clássico surgissem, abrindo espaço para que o dancehall - mais dançável, enérgico e apelando às gerações mais novas - acabasse por se impor.
Musicalmente, a estrutura do estilo é semelhante à do reggae, mas o som é mais sintético, acelerado, balanceado. A tipologia pode ser descrita como uma variação digitalizada do reggae. A estrutura é construída com equipamentos electrónicos e computadores e é centrado na batida baixo-bateria. Na sua construção, o produtor é uma peça chave. É ele quem comanda e dita as regras da criação, embora os cantores tenham que ter um estilo próprio, ao nível da performance e do visual.
As letras tanto podem ser as habituais mensagens positivas do reggae (alusões de amor, paz, união) como menções directas à performance sexual de quem canta ou exaltações à sensualidade e beleza femininas.
Quando Lesser e o marido viajaram para a Jamaica nos anos 80 fizeram-no na expectativa de falar com figuras clássicas do reggae e do dub como Augustus Pablo, mas rapidamente perceberam que havia qualquer coisa de novo a germinar que acabaria por se implantar definitivamente, em 1985, quando Wayne Smith lançou o tema "Under mi sleng teng". Produzido por Prince Jammy, e composto a partir de frases electrónicas, transformou-se no primeiro grande êxito do tipo, revolucionando a indústria local.

E as mulheres?

A primeira mudança aconteceu quando os músicos, no sentido mais clássico, começaram a ser menos utilizados, substituídos por adolescentes com apetência para a tecnologia. São essas transformações que o texto - e principalmente as fotos de Lesser - captam, mostrando-nos os "sistemas de som", os estúdios, os produtores, os cantores, os DJs e um pouco da população local, em fotografias que parecem ter sido tiradas num outro tempo. Lá vemos o cantor Gregory Isaacs posando no exterior da mítica loja de discos Museu Africano em Kingston; o cantor Horace Andy - hoje conhecido pelas colaborações com os Massive Attack - em frente aos estúdios Channel One; ou o produtor Henry "Junjo"' Lawes, que mais tarde haveria de ser assassinado em Londres, partilhando um camião com uma série de soldados, enquanto um dos seus colaboradores empunha uma metralhadora.
Mulheres é que não se vislumbram muitas. Explicação: "o dancehall é patriarcal, quase não existe espaço para as mulheres nele", diz Lesser. "Não existe nada de mal no facto de não irem a estúdio, mas participarem numa festa dancehall implica estarem em viaturas e dormirem em cima das mesmas. É um estilo de vida que a conservadora sociedade jamaicana não aceita bem."
Nos anos 80, e parte dos 90, produtores como a dupla Sly & Robbie e Bobby "Digital" Dixon, cantores como Sugar Minott e DJs-cantores como Shabba Ranks, Chaka Demus ou Buju banton dominaram o panorama, conquistando não só adeptos do reggae, mas também do hip hop ou do R&B, diversificando os públicos.
Como a esmagadora maioria das músicas populares hoje instituídas - do rock ao fado, dos blues ao hip hop - o dancehall era, na sua génese, uma música desqualificada, praticada por músicos amadores sem veleidades artísticas, provenientes das periferias dos grandes centros.
Eram muitas vezes associados à marginalidade ou a questões de afirmação identitárias, antes de terem adquirido autonomia e afirmarem a sua música no globo.
As novas gerações que têm impulsionado o género nos últimos anos, de Sean Paul a Bennie Man, já pouco têm a ver com esse contexto. Hoje encontramos elementos de dancehall um pouco por todo o lado - seja na música dos top's com Rihanna ou na música que reflecte o pulsar urbano de M.I.A., Santogold ou Lady Sovereign. Mas foi na década de 80 que a sonoridade emergiu nas ruas de Kingston, síntese simples e directa de frustrações e desejos, de um grupo de músicos que também soube fazer a festa num tempo de incertezas políticas e sociais. É quase sempre assim. A esta hora, numa qualquer outra parte do mundo, haverá alguém a imaginar uma nova música por motivos idênticos.

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